quarta-feira, 9 de junho de 2021

9 de junho de 1971.

O Vera Cruz imóvel e milhares de pessoas em frente. 

Abraços e lágrimas. 

Pouco a pouco, centenas de militares subindo, sem pressa, aquela escada alta para tomar lugar no barco que nos levaria para um destino que não escolhemos.

Um ou outro parando a meio, um olhar furtivo para a multidão que se agitava em angústia, alguma hesitação impossível de levedar e subindo de novo para o desconhecido.

Lembro-me de ter entrado e me orientar pelas indicações de um capitão algumas vezes embarcado e, assim, procurei situar-me no barco onde pudesse olhar Almada, local oposto àquele onde a multidão permanecia, para não presenciar os gritos, a agitação, a dor de toda aquela gente que ficava chorando o destino dos seus familiares no momento da partida. 

Mesmo assim, longe, o som me chegou enorme. 

Eu sabia que nenhum familiar meu estava ali; não informei ninguém da data de embarque. Mas tocou-me aquele momento. Havia algo de errado, sem sentido, neste destino.

Pouco a pouco voltei para o interior e, desses primeiros momentos não me lembro. Apenas a Madeira, no dia seguinte, me fez esquecer para onde ia. 

O Vera Cruz era uma “unidade militar” subordinada ao comando do Major Reis de Carvalho e eu tinha a incumbência de fazer aparecer diariamente uma OS (Ordem de Serviço) que, sinceramente, não me lembro se era lida ou somente publicada. Isso me ocupava algum tempo e a viagem foi decorrendo quase sem me aperceber, pelo que não lembro muito dos dias que se seguiram até S. Tomé, na véspera de chegarmos a Luanda, para além daquele triste episódio da queda de um militar no mar. 

Chegados a Luanda na manhã de 19 ou 20 de junho (não posso precisar agora a data), alertado pela informação que era passada de boca em boca de que no desembarque por ali estaria alguém ligado ao IN para nos identificar, surpreendido a olhar aqueles rostos negros pendurados nos varandins do porto, fiquei sem coordenadas, parado e perdido, acordando só quando o comboio que nos levou para o Grafanil começou a movimentar-se. Aí me apercebi da realidade, corri e tomei uma carruagem de mercadorias já em andamento. Ainda hoje me pergunto o que me teria acontecido em termos militares se, porventura, não tivesse tomado o comboio.

Depois, algumas instruções e vacinação nos dias que se seguiram,  uma correria entre diversos departamentos militares em Luanda e, finalmente, a caminhada para Sta Eulália.

Ainda me lembro de quão tenso ia, com medo, assim mesmo, e apenas algumas paisagens de vegetação exuberante e diferente na primeira metade do caminho, enquanto o alcatrão nos acompanhou, me suavizaram esses momentos. Mas sempre tentando descortinar algum ataque.

Difícil mesmo! 

Todavia, mais difícil foi a partir do momento que entrámos na estrada de terra, vulgarmente conhecida por “picada”. Muito pó, extensões sem ninguém, paisagem despida e a noite caindo.

Sem qualquer experiência de África, creio que todos começámos a sentir  desconforto e a lembrar o nosso espaço ausente, os ausentes familiares e amigos, a distância que se cruzou entre nós, perdidos algures a caminho do norte de Angola, entre um céu negro e uma terra escura. 

E Lisboa a fervilhar… Luanda mergulhada na noite, tranquilamente…

 

Chegados a Sta Eulália, perfilados nas regras militares, fomos saudados pelo Brigadeiro Comandante da AM1, num discurso patrioticamente intencionado, verberando a justeza da guerra e a certeza da vitória, e que a nossa presença apontava ao sucesso.

Não podia ser de outro modo; a nossa presença era imprescindível para a vitória final!

 

Não me lembro de muitos pormenores dos dias primeiros. Houve a “sobreposição” e tenho vaga ideia da saída dos que fomos substituir. A partir daí, ficámos por nossa conta.

Foram dois anos de episódios vários,  com momentos de alegria e de tristeza, bons e menos bons, de tensão e de cumplicidades, mas que forjaram entendimentos entre nós que ainda permanecem.

Vou apenas contar um episódio em que participei por considerá-lo ilustrativo da convicção das chefias militares sobre a justeza daquela guerra.

Na manhã do primeiro dia do ano de 1972, o Chefe do Estado-Maior, homem insuflado de ambição na carreira militar, convocou os oficiais para “apresentação de cumprimentos de ano novo” ao Brigadeiro Comandante, situação que ainda hoje me parece absurda, atendendo às circunstâncias. 

Feito o primeiro discurso pelo Chefe do Estado-Maior, agradeceu o Brigadeiro e, num apelo à nossa compreensão para os sacrifícios que sentíamos, em determinada parte do seu arrazoado, afirmou que haveríamos de estar motivados uma vez que 

- …  estamos a defender o que é nosso porque…

(e silenciou… Acho que o “porque” lhe saiu sem controlo)

- … porque…

(de novo o silêncio e um olhar baixo e vago em torno da secretária)

- … porque… porque chegámos cá primeiro que os pretos.

Lapidar!

 

Dois anos passados naquele isolamento, regressámos a Luanda e depois a Portugal, nesta ocasião já em viagem aérea. Desmobilizámos e partiu cada um para a aventura da sua vida, para o princípio de quase tudo, com nada entre as mãos, porque aqueles anos nada nos deram para a retoma da vida.

Lembro com muita mágoa aqueles que tinham deixado filhos, uma vida familiar no começo e interrompida, sem possibilidade de sentirem a alegria de os verem crescer. Roubaram-lhes momentos importantes da vida a que tinham direito e tiraram aos filhos a presença dos pais que lhes era devida.

Recordo, ainda com pesar, os que, de entre nós, durante os dois anos não saíram de Sta Eulália, confinados permanentemente pelo arame farpado, crescendo-lhes, dia a dia, um campo de concentração. 

De positivo recordo o facto de termos possibilitado a alguns soldados portugueses e angolanos passarem de analfabetos a cidadãos com a instrução primária. É, para mim, o que de mais gratificante realizado me fica desse tempo.

Desmobilizados, o Estado nos abandonou à sorte e nunca senti nenhuma atitude que nos pudesse suavizar o tempo perdido. Pelo contrário; às vezes até nos querem culpar de termos participado nesta guerra sem sentido.

Os soldados, cabos, furriéis e alferes eram milicianos. Não eram militares profissionais, de carreira; eram civis a quem fardaram e enfardaram para uma guerra, a quem roubaram a possibilidade de terem uma vida normalmente vivida. A teimosia do poder de então alimentou a situação até ao quase esgotamento. Historicamente a situação era insustentável e, por isso, um poder político com sentido de Estado, considerando os seus cidadãos e o valor da vida humana, poderia há muito tempo ter encontrado uma solução menos onerosa para a grande maioria dos portugueses e de todos os envolvidos no conflito. Treze anos é muito tempo para encontrar formas interessantes para a interrupção da guerra.

A Pátria/Mátria ainda é madrasta connosco. Nos subjugou e nos abandonou; e ainda hoje não se desculpou e nos compensou por nos ter envolvido num erro histórico.

 

Restam-nos os laços afectivos que fizemos e que ainda hoje alimentamos nos diferentes encontros que temos realizado. E permitam-me agora uma palavra de apreço e de agradecimento ao José Marques, sempre atento a cada um de nós e que tem sido o pilar da realização desses convívios. 

 

9 de junho de 1971. Há cinquenta anos embarcámos para Angola.

Evoco com veneração aqueles que, de entre nós, partiram de todos os convívios e não vivenciam esta efeméride. Que estejam bem, seja onde for.

 

9 de junho de 1971. 

Saudo todos os que ainda se lembram desse dia, desses momentos. De modo especial, o então Major Simas da Silveira que, sempre que possível, a nós se junta em convívio.

 

9 de junho de 1971. Há cinquenta anos embarcámos para Angola.

Dia interessante para de novo nos encontrarmos, trocarmos abraços e sentimentos.

Impedidos, haveremos de nos vingar deste bicho num dia qualquer que o Marques encontrará para nos reunir. Quem aguentou a guerra, e aguenta o esquecimento do Estado e mais cinquenta anos, há-de aguentar este malfeitor.

Muita saúde para todos.

Abraço

 

Agostinho Pereira 

NOTA- Escrito seguindo as normas anteriores ao actual acordo ortográfico.